Feminilização é violência; e Mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade

Hoje eu vou continuar com vocês a conversa sobre a ideia da feminilização das mulheres. Ideias e conceitos que eu venho colocando no debate coletivo há alguns anos. Retomando esse histórico, eu já comentei aqui nos meus vídeos que, desde 2015, eu venho utilizando esse conceito de mulheres não feminilizadas ou mulheres lésbicas não feminilizadas. Eu propus essa ideia entre 2015 e 2016 e, em 2016, em agosto, na cidade de São Paulo, durante as atividades da Visibilidade Lésbica, eu organizei com outras mulheres lésbicas uma roda de conversa entre [o que então denominamos como] mulheres lésbicas não feminilizadas. Até onde eu sei, eu sou autora desse conceito e gostaria de saber se outras pessoas já vêm utilizando essa ideia de “feminilização”, “mulheres não feminilizadas”, “mulheres desfeminilizadas” antes de 2015, antes de 2016, porque eu gostaria de entender a genealogia desse conceito aqui no Brasil, pois nos últimos anos essa ideia vem sendo difundida e eu desconfio, eu imagino que eu tenha colocado esse conceito e ele tenha se difundido a partir dessa época. Então, por favor, me avisem caso vocês souberem, caso você mesma já tenha utilizado esse conceito anteriormente.

De uns anos pra cá, eu venho desenvolvendo essa ideia e, recentemente, eu venho questionando, inclusive, a ideia das mulheres ou das lésbicas “não feminilizadas”.

O processo de feminilização – conforme eu coloquei aqui em outras oportunidades – é um processo que ocorre contra todas as mulheres, é a própria definição de patriarcado. Patriarcado é um sistema que violenta as mulheres e essa violência ocorre através dessa ferramenta, do processo de tornar as mulheres feminilizadas, que é um processo que associa diretamente pessoas que nascem do sexo feminino a uma exploração sexual, uma exploração desses corpos, com uma dominação social das mulheres. Então, é um processo, a feminilização é um processo de dominação.

Hoje irei compartilhar essas ideias, eu vou ler um trechinho que eu acabei de escrever hoje, dia 2 de setembro de 2021, sobre essa ideia da feminilização e, no fim, vou apresentar aqui uma nova proposta, um novo conceito que eu estou pensando pra nos referirmos às mulheres que não estão no padrão da feminilidade. Vamos pensar em ideias que expressem o que está ocorrendo e utilizar ideias que expressem da melhor forma o que está ocorrendo.

“Feminilização é o processo de tentativa constante de dominação de mulheres por parte dos homens. Feminilizar uma mulher é reforçar a ideia de que mulheres são naturalmente menos aptas para o espaço da política, e mais aptas a praticar a maternidade, e também, seriam naturalmente mais eróticas ou sensuais do que os homens. Nesse sentido, a feminilização das mulheres é o processo que associa o elemento biológico (nascer mulher, ser uma pessoa do sexo feminino) de forma causal e necessária com o elemento social da não assertividade e com os elementos igualmente sociais do ato de cuidar e da relação erótica.

Esses três elementos integram o processo de feminilização: primeiro, a ausência das mulheres dos espaços políticos, dos espaços de tomada de decisão; segundo, a maternagem; terceiro, erotismo e sensualidade exacerbados.

Esses elementos desencadeiam uma série de violências praticadas contra as mulheres. Praticadas majoritariamente pelos homens, mas também por outras mulheres. São violências que se fundam na realidade corporal dos corpos femininos, do sexo feminino das mulheres, transformando essa realidade biológica em violência. Ou seja, em realidade social de dominação, exploração, atos e contextos de violência contra as mulheres, como o estupro, gravidez forçada, casamento forçado – que é estupro –, mutilação genital, pobreza menstrual, violência política, muitas vezes a proibição da participação de mulheres em determinados espaços políticos ou religiosos devido ao fato direto das mulheres menstruarem; perfuração do lóbulo de bebês – que são os brincos nas orelhas dos bebês do sexo feminino, em algumas culturas, o que pode ser considerado tortura; a deformação de certas partes do corpo devido às mulheres serem forçadas a utilizar determinados calçados, vestimentas ou adereços; forçar mulheres a passar frio ou calor devido a vestimenta que são obrigadas a utilizar; violência ginecológica e violência obstétrica – que é a violência relacionada ao parto e à gravidez; locais de trabalho que obrigam mulheres a utilizarem o salto alto, que força a dificuldade ao caminhar, ao se deslocar; socialmente obrigar mulheres a retirarem os pelos corporais, em muitas culturas, sob pena de punição social cotidiana caso não o fizerem; prostituição/exploração sexual, violência que ocorre majoritariamente contra as mulheres (existem homens que se prostituem, mas é a minoria no mundo e na história); tráfico de mulheres com o fim de estupro.”

Aqui a exploração sexual é entendida como o estupro. Continuando:

“O tráfico de mulheres, o sequestro de mulheres de um local ao outro do mundo para que essas mulheres sejam estupradas por outros homens de outros países; pornografia, que também ocorre majoritariamente contra mulheres.”

Pensando a pornografia como uma violência. Então foram alguns exemplos, exemplos conhecidos, de violências que ocorrem contra as mulheres e majoritariamente praticadas por homens e são violências diretamente ligadas ao corpo, ao corpo feminino, às pessoas do sexo feminino. Todos esses exemplos são violências praticadas diretamente contra as características do corpo feminino.

Então o processo de feminilização é todo esse processo de violência contra as mulheres, todas essas violências que ocorrem. Ou seja, é o patriarcado na tentativa constante de dominar mulheres, de explorar mulheres, de controlar mulheres, de violentar mulheres de várias formas.

Essas tentativas, esse contexto de violência e dominação é o processo de feminilização. Ou seja, você torna uma mulher feminilizada durante o processo de violentar essa mulher.

Observando a raiz da palavra há a mulher, há o sexo feminino e a feminilidade. Eu já escrevi sobre isso em um livreto que está disponível no palavraemeia.com. Há a pessoa que nasce do sexo feminino – há essa ideia do sexo feminino em contraposição ao sexo masculino, é uma realidade biológica. Há a questão da ser mulher, de ser mulher, que gera a mulheridade, que é uma experiência social. No patriarcado essa experiência social é traduzida de forma dominante como um contexto de violência contra as mulheres. Ainda assim é importante pensar nos espaços entre mulheres e que essa mulheridade pode ser também expressão desses espaços de fortalecimento entre mulheres. A feminilidade é uma ideia que surge a partir da relação entre esses dois conceitos, sexo feminino e mulher, mulheridade. E surge como uma ferramenta de opressão, uma ferramenta de dominação das mulheres. Passa a se reforçar certas características de comportamento que as mulheres deveriam ter, características essas que justificariam a sua realidade biológica que é colocada de uma forma negativa. Essa realidade é colocada como uma forma de justificar a própria dominação das mulheres. Há então essa justificativa social e esse entrelaçamento entre realidade social e realidade biológica que o patriarcado vai cotidianamente – e o faz há vários milênios –, de várias formas diferentes nas várias sociedades, forjando, construindo, lapidando essa relação que se coloca como necessária.

No pensamento patriarcal, a pessoa do sexo feminino é sinônimo de pessoa que não é um ser político, de uma pessoa que é submissa e que obedece às regras criadas pelos homens.  O conceito que liga esses dois campos, o social e o biológico, seria o processo de feminilização. Se utiliza essa palavra, que tem a raiz na biologia do sexo feminino e se transforma em “feminilidade”, que seria uma expressão social, um contexto social, um comportamento reforçado às mulheres para justificar esse contexto de dominação social que se funda sobre o corpo biológico.

O patriarcado é um esquema complexo – se não fosse, não estaria ocorrendo há tanto tempo –, a sua complexidade, inclusive, dificulta a luta contra esse sistema, a quebra desse sistema.

No início dessa fala eu falei que iria comentar, propor uma nova forma de pensar as mulheres que não seguem esse padrão da feminilidade. Voltando a 2015, quando eu estava pensando nesses conceitos, era muito frequente a ideia de “mulheres femininas” e “mulheres não femininas”, e até de outra forma que eu vou também questionar aqui, mulheres que não seriam femininas, se classificava como “mulheres masculinas”. Eu comecei a questionar nesse momento, em 2015, e propus essa ideia da feminilização, com o objetivo de questionar essa ideia da naturalização, de que mulheres são femininas. Somos pessoas do sexo feminino e somos feminilizadas, feminilização é um processo social. Eu propus que mulheres que estavam questionando de alguma forma esses comportamentos, esses padrões de comportamento, de postura diante da sociedade, propus que pudéssemos chamar, denominar essas mulheres de mulheres “não feminilizadas”, porque estariam questionando esse sistema de feminilização.

Neste ano, agora em 2021, recentemente eu venho questionando, já faz uns meses, talvez até em 2020, eu comecei a questionar essa ideia, pois todas as mulheres são feminilizadas, todas nós passamos por essa tentativa de imposição da violência, da dominação.

Cotidianamente em todos os espaços da sociedade, pessoas estão o tempo todo tentando feminilizar as mulheres, ou seja, tornar mulheres submissas, tornar mulheres não assertivas, forçar que mulheres não questionem as coisas, não questionem as violências, que sejam violentadas e fiquem caladas, e assim por diante.

O processo de feminilização é diário, contra todas as mulheres, sem exceção. Caso eu tenha sido autora desse conceito “mulheres não feminilizadas” – ainda não tenho certeza, tenho quase certeza, mas, de qualquer maneira, caso eu tenha sido autora –, já declaro aqui publicamente que estou discordando do meu próprio conceito. Por quê? Justamente, todas as mulheres são feminilizadas, pois todas passamos pelo processo de feminilização diário, constante. Há muitas mulheres que estão questionando esses sistemas, essas violências sendo possível pensar esse questionamento sobre a feminilidade de uma forma ampla, pensar que todas as mulheres que estão de alguma forma questionando essas violências estão se posicionando contra o processo de feminilização, que é um processo de violência.

É frequente que as pessoas compartimentem os elementos na tentativa de entender melhor algo. Muitas vezes a afirmação sobre mulheres “femininas”, ou que estão no padrão de feminilidade, deriva de uma interpretação sobre o comportamento e a estética daquela mulher, porém não é isso que ocorre, a feminilização é um processo de violência estruturado socialmente, é uma estrutura social, é um regime de dominação, não é só uma aparência, não é apenas um comportamento. Porém, no senso comum, nas falas cotidianas, se utiliza essa expressão para pensar o comportamento, a estética, a vestimenta, enfim, das mulheres. Esse é um dos aspectos que possibilita o questionamento sobre essa violência [da feminilização], até porque a violência, como eu comentei, ocorre também diretamente sobre o corpo das mulheres. Há muitas formas de realizar esse questionamento, mas então vamos pensar em um conceito, vamos lá, eu escrevi assim: “mulheres que de alguma forma questionam essas violências são mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade.”

É um novo conceito que eu estou propondo, então vou falar novamente: “mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade”. Ou seja, mulheres – todas são feminilizadas –, porém muitas não correspondem à expectativa da feminilidade.

É importante apartar a feminilidade das mulheres. A feminilidade é um processo de imposição que vem do patriarcado, que vem dos homens. As mulheres que estão questionando essas violências de alguma forma estão fugindo da expectativa. A feminilidade se torna também uma expectativa, além de uma prática, além de uma estrutura social, ela se transforma em uma expectativa, pois a partir do momento que se coloca que uma situação tem que ser padrão – ou seja, tem que ser repetida da mesma forma por um longo período de tempo ou em um mesmo momento…[frase não finalizada]. O padrão se baseia também na expectativa porque se há um padrão que vem acontecendo em um determinado período, há uma expectativa que ele se repita, que ele continue sendo um padrão, que ele continue se autoproduzindo e mantendo aquela mesma forma, aquela mesma ideia, é um padrão que se repete, que se sustenta no tempo.

Logo, o padrão também está estruturado na expectativa, a feminilidade é também uma expectativa, ou seja, não é algo natural das mulheres, é uma expectativa social, logo, a partir do momento que as mulheres estão questionando todas essas violências, elas estão questionando essa expectativa, estão quebrando o que se espera delas.

Então eu coloco essa ideia, essa nova ideia hoje, agora, em setembro de 2021, como uma proposta para aprofundar, continuar aprofundando sobre a ideia da feminilização, pensando cada vez mais como algo que é imposto pela sociedade, imposto pelos homens, [sendo o questionamento das violências cometidas contra as mulheres entendida como] uma falta de correspondência à expectativa social da feminilidade.

Logo, pode-se pensar de uma forma mais ampla que todas as mulheres que estão questionando essas violências, se mobilizando em redes internacionais, redes locais, redes nacionais, contra essas violências mencionadas acima como a mutilação genital, a exploração sexual, o tráfico de mulheres – eu até esqueci de mencionar aqui a proibição do aborto –, perfuração do lóbulo de bebês, a deformação de certas partes do corpo e assim por diante, todas as mulheres organizadas, inclusive em movimentos, estão questionando a feminilização. Também é possível pensar que essas mulheres [organizadas em movimentos sociais] não correspondem à expectativa da feminilidade, pois a feminilidade espera que as mulheres não questionem as violências. Essa é uma forma de pensar. Outra forma de pensar é enfatizar apenas a questão corporal, estética, do comportamento, da vestimenta, dos espaços que a mulher frequenta, das profissões que ela procura etc.

É possível pensar dessa forma mais objetiva, mais visível, muitas vezes, que existem mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade em termos dessas violências cometidas, certas violências cometidas contra o corpo, no caso da vestimenta, uma vestimenta que a mulher mesma escolha, ela não está determinada necessariamente pela sociedade a usar essa ou aquela vestimenta, em geral as vestimentas que promovem a mobilidade, que não machucam, não sufocam, não impedem a respiração, não deformam o corpo etc. A feminilidade reforça, em várias culturas, que as roupas devem de alguma forma impedir, incomodar, deformar o corpo, causar alergias e incômodos. Mulheres que estão questionando essa feminilidade na vestimenta estão utilizando roupas que possibilitem o movimento, que não incomodem.

É possível pensar essa questão em relação a cabelo ou outros tipos de questões corporais, como a obrigatoriedade social de mulheres colocarem adereços ou pintura facial, adicionarem coisas no corpo para corresponder ao padrão de feminilidade que, como eu disse, está ligado à eroticidade, à sensualidade em excesso. Elementos que exacerbem essas características corporais. Muitas vezes, mulheres que não correspondem a essa expectativa da feminilidade não irão utilizar esse tipo de adereço, esses objetos.

Em relação ao comportamento das mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade, pode-se pensar na questão da assertividade. Mulheres que desenvolvem cotidianamente de forma explícita, de forma assertiva, se manifestam, se expressam explicitamente de forma assertiva, seja manifestando suas opiniões, seja dizendo sim quando ela quer dizer sim, dizendo não quando quer dizer não, discordando – quando ela percebe algo com o qual discorda e quer manifestar aquela discordância – apresentando novas propostas, posicionando-se imediatamente contra violências, por exemplo, também são formas através das quais a assertividade se manifesta. Manifestando afeto, inclusive, a assertividade também ocorre em qualquer momento em que se manifesta a nossa vontade, o nosso desejo – de forma respeitosa, obviamente, em qualquer nível.

Em termos de comportamento, pode-se pensar que mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade são mulheres que estão cotidianamente praticando explicitamente a assertividade, que é uma qualidade que o patriarcado reforça que as mulheres não devem desenvolver.

Então, essa é a minha proposta.

Como eu afirmei no início, eu acho muito complicado, como muitas mulheres já vêm dizendo há um tempo, classificar mulheres que fogem, já utilizando esse conceito, que não correspondem à expectativa da feminilidade, caracterizar essas mulheres como “mulheres masculinas”, pois é uma incongruência conceitual, não faz sentido, pois a masculinidade está ligada a pessoas do sexo masculino. Assim como a feminilidade, a feminilização é um processo, a feminilização de reforçar as características naturais e justificar essas características através da relação direta com as características sociais de submissão; a masculinidade é o oposto, seria a justificativa de que seria natural os homens terem comportamentos sociais específicos, como aquele que se manifesta mais, que decide, que teria habilidades de tomar decisões coletivas e resolver problemas coletivos etc.

Logo, é logicamente incongruente afirmar que mulheres têm características masculinas, justamente porque o masculino, nesse discurso patriarcal, está necessariamente ligado a pessoas do sexo masculino, aos homens.

O patriarcado deturpa os conceitos de forma a tirar a possibilidade que esses conceitos possam estar associados às mulheres. Nesse sentido, no patriarcado é reforçado que o masculino é naturalmente assertivo, que pessoas do sexo masculino são naturalmente assertivas ou agressivas, dessa forma, é retirada a possibilidade que as mulheres sejam socialmente assertivas e tenham comportamentos, muitas vezes, agressivos, não no sentido da violência, mas no sentido de tomar decisões, de fazer coisas, enfim, de forma incisiva.

O masculino e o feminino existem em uma relação de poder, onde os homens violentam as mulheres. Não faz sentido lógico afirmar que mulheres poderiam ser masculinas, porque o masculino está no polo oposto. Essa é uma crítica que eu faço à classificação de mulheres como masculinas. Proponho [em relação às mulheres que questionam as violências patriarcais] o termo “mulheres que não correspondem à expectativa da feminilidade.”

É uma frase um pouco maior do que “mulheres não feminilizadas”, mas, penso que, no momento, expressa melhor o que ocorre. Espero que consigamos ter um conceito mais curto para expressar melhor essa realidade. Então, obrigada e até a próxima!

Fala de Daniela Alvares Beskow publicada em 02 de setembro de 2021 no Instagram @daniela_beskow e Youtube Daniela Lab. Transcrição e adequação de algumas palavras para a linguagem escrita – mantendo o aspecto original da linguagem informal da fala – e publicação do texto em outubro de 2023 em palavraemeiasemanal.com

Artigo da seção Falas escrito por Daniela Alvares Beskow

Publicado em 04 de outubro de 2023

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