Feminilização e desfeminilização: apontamentos

Feminilização é ferramenta patriarcal de controle e violência contra os corpos femininos; processo de violência que marca a existência das mulheres e gera territórios sociais de desigualdade e segregação. A masculinidade gera hierarquia e estrutura social de exploração, dominação e violência e submete mulheres a vidas com liberdade e autonomia comprometidas devido à:
– Pouca ou nenhuma possibilidade de tomada de decisão sobre o coletivo;
– Menos acesso a recursos;
– Leis, regras e contextos que restringem a mobilidade nos espaços;
– Leis e contextos que submetem as mulheres ao controle de homens (muitos exemplos na história);
– Ameaça constante de estupro;
– Contextos de exploração sexual;
– Contextos de tráfico de mulheres;
– Impedimentos ou obstáculos aos direitos reprodutivos;
– Violências médicas contra mulheres em situação vulnerável em espaços de saúde;
– Desvalorização das ideias, falas e propostas de mulheres;
– Exploração do trabalho de mulheres: cuidados, doméstico e trabalho principal (menos remunerado, mais precarizado);
– Contexto social aversivo a mulheres assertivas;
– Vestuário que compromete a mobilidade e praticidade;
– Imposição social de modificações corporais e adereços: remoção de pelos, pintura facial, utilização de penduricalhos e bolsas;
– Imposição social da heterossexualidade e até mesmo a criminalização da prática da lesbianidade;
– Outros exemplos.
Todas as mulheres que se revoltam contra esse sistema são mulheres em processo de desfeminilização, pois, se rebelam contra o sistema de violência contra os corpos femininos.
Frequentemente se entende que o questionamento à feminilidade ocorre apenas no nível da estética, comportamento e corporalidade. Estes elementos são parte integrante dos papeis de gênero, mas, apenas existem dentro do sistema patriarcal inteiro de violência contra mulheres, são “a ponta do iceberg”. Ainda assim, parte importante do sistema de dominação, pois, são a “vitrine” de como deve ser uma mulher, resultado de seu local social de exploração. Esta “vitrine” é também material, não é apenas “aparência”, pois:
– Dificulta a mobilidade corporal das mulheres (por exemplo, com sapatos desconfortáveis, pequenos e que apertam os dedos; sapatos com saltos que dificultam andar ou caminhar; sandálias frágeis que deixam os pés expostos) tão importante para o deslocamento e ação na vida coletiva;
– Dificulta a fala (por exemplo, com roupas apertadas), tão importante para a assertividade;
– Objetifica sexualmente (a partir da diferença entre roupas destinadas a homens, que cobrem boa parte do corpo; e roupas destinadas a mulheres, que marcam e revelam partes íntimas);
– Dificulta o bem-estar corporal na vida individual e espaços sociais (por exemplo, com roupas íntimas pequenas, apertadas e inadequadas para corpos adultos);
– Em muitos casos, fragiliza o corpo (no caso de tecidos finos que não aquecem em momentos de frio; casacos curtos e acima da cintura que deixam o centro do corpo desprotegido; roupas de esporte muito finas que não protegem em caminhadas em trilhas etc.)
– Torna vulnerável a vida cotidiana (por exemplo, com roupas sem bolsos para proteger carteiras, celular e chaves);
As características de tais vestuários e sapatos desestabilizam a movimentação, pois, dificultam o equilíbrio e a rápida e ágil movimentação.
Este sistema estético e de vestuário gera um sistema de corporalidade e comportamento, já que roupas “envelopam” o corpo e permitem ou dificultam o movimento, cobrem ou expõe, aquecem ou deixam exposto. A existência corporal, e logo, a possibilidade de comportamento e ação, é afetada diretamente pelas vestimentas e calçados que utilizamos. Roupa, nesse sentido, não é apenas estética, mas, possibilidade ou impedimento de movimento corporal, fator central para a concretização da autonomia e soberania dos corpos.
Outro elemento importante da corporalidade imposta às mulheres – que gera também visualidade – é o pouco incentivo à força muscular e frequentemente, a associação pejorativa entre mulheres e força. O desenvolvimento de força muscular gera autonomia em situações cotidianas e extra cotidianas, como momentos de imprevisto ou emergência ou mesmo experiências de exercício e lazer mais intensas, como caminhadas de longa distância, trilhas, escalada etc., que são possibilidades lúdicas e de saúde mental. Mulheres que se propõe a desenvolver a força física frequentemente são interpretadas socialmente de forma negativa. Pouca força física é também corporalidade da feminilidade, que de acordo com as normas patriarcais, deve ser deficiente.
Mulheres que afrontam e questionam na prática o sistema corporal da feminilidade: feminilidade estética, comportamental e de corporalidade, vestindo roupas e calçados confortáveis e práticos – que permitem a livre movimentação, o respirar e a praticidade cotidiana, que trabalham a força muscular, que desenvolvem a assertividade – são tratadas com desconfiança, pois, são exemplos de mulheres que se rebelam não apenas contra as normas da aparência, mas, as normas do território social onde mulheres devem habitar. Este território está marcado pelo controle dos corpos das mulheres e sua transformação em objeto de deleite sexual para homens através da apropriação visual e material dos corpos das mulheres. O espaço social destinado às mulheres é entendido como local de expropriação de tempo e mão de obra e em contrapartida, é destinado aos homens controle não apenas sobre si mesmos, mas sobre um território “extra”, os corpos das mulheres dos quais se apropriam.
A não aceitação a esse sistema corporal por parte das mulheres advém da afirmação em estar no mundo e a possibilidade em movimentar-se plenamente; falar de forma desimpedida; deslocar-se pelo espaço com facilidade; estar de forma protegida, prática e plena nos locais públicos e de deslocamento; praticar a assertividade em sua plenitude: agir, propor, reagir e questionar violências, manifestar discordâncias, expressar alegria ou seriedade quando desejado.
Mulheres em processo de desfeminilização são mulheres que rompem as fronteiras destinadas ao seu sexo, mulheres que rompem o papel de gênero destinado às mulheres, questionando as normas sociais que as exploram, violentam e dominam e criticando todos os alicerces do patriarcado que negam vida e cidadania plena às mulheres. A cada nova fronteira desestabilizada, seguiremos ampliando espaços.
Daniela Alvares Beskow
06/09/2024