Ato por Gilberto Schneiker e contra a homofobia e o racismo em Campinas

16 de setembro de 2023 foi dia de protesto e homenagem em Campinas (SP). Diversos movimentos sociais e lideranças estiveram no ato por justiça a Gilberto Pereira Schneiker, junto à familiares, amigos e apoiadores. O historiador de 31 anos – homem negro e gay – teve sua vida interrompida após ser atacado no início do mês na Vila Mingone. Segundo o Portal G1, o suspeito pelo crime foi preso e o ocorrido está sendo investigado.

Nenhuma cidade do interior de São Paulo, incluindo a cidade de Campinas, possui uma delegacia especializada em crimes de ódio e intolerância a pessoas LGBT e pessoas negras. A única  Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) do estado se localiza na capital. Esse panorama se demonstra insuficiente frente aos casos de violência cometida contra a população LGBT e negra no Brasil. É de conhecimento comum que são frequentes as violências contra mulheres lésbicas, homens gays, pessoas transsexuais e bissexuais, motivados por ódio à orientação sexual, identidade de gênero e expressões desviantes e críticas das normas dominantes. Os locais dessas violências ocorrem em espaços públicos ou privados, cometidas por agressores e agressoras conhecidas ou desconhecidas da vítima. A população negra também sofre diversos tipos violências em vários espaços sociais, sendo essa realidade também de conhecimento geral.

Ainda que ocorram com frequência e sejam de conhecimento público, há uma ausência de dados oficiais sobre os crimes de LGBTfobia cometidos no Brasil e, logo, o “apagamento institucional desta população”. Essa é a conclusão do relatório “Discriminação e violência contra a população LGBTQIA+: relatório da pesquisa”, de autoria do Conselho Nacional de Justiça e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022, p.35), que demonstra que “tal apagamento se dá desde os órgãos de segurança pública, percorre toda a persecução penal e também se destaca durante o curso do processo judicial, chegando até a execução penal.” Segundo o relatório, “foi identificada uma falta de delegacias especializadas em crimes contra vulneráveis ou racismo, considerando a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo pelo Supremo Tribunal Federal” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022, p.35).

Cartazes em pedem justiça e denunciam homofobia e racismo. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Manifestantes exibem cartazes. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.

Segundo o portal de notícias do governo do estado (PORTAL DO GOVERNO, 2018), é possível registrar a homofobia como “provável motivação do crime” no Boletim de Ocorrência presencial ou on-line no site da Secretaria de Segurança Pública, porém os dados sobre crimes contra pessoas LBGT ocorridos no estado de São Paulo e referentes aos anos de 2021 e 2022 não constam no Anuário de Segurança Pública 2023. Segundo o documento, a informação relativa à lesão corporal dolosa, homicídio doloso e estupro de pessoas contra esse segmento social não estavam disponíveis e aparece zerada nos campos do estado de São Paulo no documento, assim como nos estados do Acre, Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O estado de Pernambuco aparece com 655 casos de lesão corporal dolosa contra pessoas LGBT em 2021, e 540 em 2022. Paraíba, com 6 e 5, respectivamente (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023, p. 106).

No Atlas da Violência 2021 consta que, entre 2011 e 2019, foram realizadas no Disque 100 um total de 18.820 denúncias de violência contra pessoas LGBT no Brasil: 14.959 denúncias de violência, 3.088 denúncias de lesão corporal, 245 denúncias de tentativa de homicídio e 537 denúncias de homicídio. A mesma pesquisa afirma que, de acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN), base de dados do Ministério da Saúde, houve 4.344 casos de violência contra pessoas homossexuais em 2019 no Brasil (CERQUEIRA et al, 2021, pg. 59-60 e 63). Sobre o ano de 2019, especificamente, o Disque 100 aponta para o total de 1.021 denúncias de violência contra pessoas LGBT.

As informações disponíveis não fornecem um panorama completo e consistente das violências contra pessoas LGBT – incluindo homossexuais – no país. Inclusive porque não há, até o presente, pesquisas oficiais de caráter estatístico e demográfico sobre essa população – de responsabilidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, o que impede a análise comparativa das violências com o total dessa população e com a população em geral, dificultando pesquisas e elaboração de políticas públicas para o segmento. Ainda assim, os fragmentos de conhecimento estatístico sobre o tema, somados ao conhecimento geral sobre a existência dessas violências, apontam para a necessidade de mais políticas públicas de combate à violência cometida por agressores e agressoras contra pessoas LGBT.

Manifestantes exibem cartazes. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Cartazes pedem justiça. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.

É de extrema importância que toda a sociedade tenha conhecimento das consequências a que estarão sujeitas caso cometam violência LGBTfóbica ou racista e que entenda a gravidade de ações de violência contra qualquer pessoa. Campanhas informativas em escolas e espaços de trabalho, nos transportes públicos e em grandes eventos são possibilidades de difusão da informação. Formações de profissionais públicos e da área privada no que diz respeito ao tema é também necessário junto a políticas públicas de empregabilidade, moradia e acesso à saúde, educação e oportunidades para toda a população LGBT e toda a população negra. É preciso avançar com rapidez na promoção de um país sem violência. É também vital que os sistemas de informação estatística sobre a violência se aprimorem no país, promovendo, assim, conhecimento consistente para o enfrentamento a todas as formas de violência.

O trabalho de agentes da segurança pública e da área do judiciário é mais um elemento necessário para que dados estatísticos e, logo, políticas públicas eficazes sejam colocadas em prática. Segundo José Marcelo Domingos de Oliveira (OLIVEIRA, 2012, p.104-105), é necessária uma sequência de ações consideradas imprescindíveis para a investigação de crimes contra pessoas e que forneçam, dessa forma, dados para que seja considerada a hipótese de LGBTfobia: “Primeiro, a perícia criminal precisa ser técnica e apresentar um relatório o mais minucioso possível, a ponto de servir de elemento chave para a reconstrução da cena e circunstância do crime. Segundo, laudo cadavérico é outra peça que precisa ser desenvolvida de forma a apresentar com precisão a causa mortis, com exames precisos e relatos mais consistentes, sem deixar margens para duplas interpretações. Terceiro, inquérito policial focado principalmente em questões pertinentes, com desenvolvimento de teses e hipóteses que primem pela busca dos fatos e menos na sexualidade da vítima e envolvidos. Além do cuidado no preenchimento de todos os campos relativos ao réu e à vítima.”

A violência contra a população negra no Brasil também é histórica e vem sendo denunciada há décadas pelo movimento negro e movimentos sociais. Segundo o Atlas da Violência 2021 (CERQUEIRA et al, 2021, p.49): “Em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra.” De acordo com o relatório “Violência Armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial” (INSTITUTO SOU DA PAZ, 2022, p.6), entre 2022 a 2020, aproximadamente 338 mil homens negros foram assassinados no Brasil e, em 2020, a taxa de homicídio por armas de fogo de homens negros em capitais e regiões metropolitanas foi de 51 para cada 100 mil habitantes, enquanto que a de homens brancos para o mesmo tipo de violência foi de 14 para 100 mil habitantes.

O ato por Gilberto foi um ato contra a homofobia e o racismo, que seguem ocorrendo na cidade de Campinas e no Brasil em uma persistência que exige mais políticas públicas e também políticas mais eficazes contra essas violências estruturais. “Não queremos nenhum a menos” foi a mensagem de um dos participantes do ato do dia 16 em fala ao microfone.

O ato iniciou na Estação Cultura, local de referência para manifestações de arte e cultura na cidade e de acolhimento das populações periféricas nessas atividades. Os manifestantes se concentraram entre 15h e 17h em um momento de homenagem a Gilberto, confeccionando cartazes e organizando-os em um mural temporário no chão do local, em meio a tambores, fitas coloridas e dizeres de denúncia e pedidos de justiça. A imprensa local esteve presente e colheu depoimentos.

Manifestantes pedem justiça. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.

Às 17h, a manifestação iniciou a caminhada pela Rua 13 de Maio ao som da bateria e falas de protesto, entregando panfletos informativos à população. Atravessou a Avenida Francisco Glicério e fez uma pausa simbólica na Praça Carlos Gomes, conhecida como “Praça do Sucão”, local muito frequentado pela população LGBT na cidade. A mãe de Gilberto, presente no ato, clamou ao microfone “Mataram meu filho. Quero justiça.” seguida de um momento de silêncio. Então, os manifestantes desceram até a Avenida Anchieta e finalizaram em frente à prefeitura, com falas dos movimentos sociais presentes nas escadas do edifício executivo.

Estavam presentes os seguintes movimentos sociais em apoio a Gilberto e denunciando o crime de homofobia e racismo: Juntas! e Juntos!, União Nacional LGBT, Coletive Kilomba, Ateliê Trans Moras, Núcleo de Consciência Trans, Rede Afro LGBT, Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) Campinas, Mandato Vereadora Mariana Conti PSOL, Coletivo Manifesta PSOL, Mandato Vereador Paulo Bufalo PSOL, Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT), Nossa Classe Educação, Maloca Arte e Cultura, Movimento de Luta Antimanicomial Campinas, Unidade Popular pelo Socialismo, Minha Campinas, Partido Comunista Brasileiro (PCB) Campinas, LGBT Comunista, Faísca Revolucionária, Promotoras Legais Populares (PLP’s) Cida da Terra, Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP) Flores Vermelhas, Oposição da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Unicamp, Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH) da Unicamp e Identidade – Grupo de Luta pela Diversidade Sexual.

Pelo fim do racismo e da homofobia, por nenhuma pessoa a mais para a violência.

Manifestação desce a Rua Treze de Maio. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Manifestação desce a rua Treze de Maio. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Manifestação na Avenida Francisco Glicério. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Manifestação chega à prefeitura. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Falas em frente à prefeitura. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.
Manifestação em frente à prefeitura. Fotografia: Palavra e Meia Semanal. 16 set 2023.

Artigo da seção Análise escrito por Daniela Alvares Beskow

19 de setembro de 2023

Acompanhe Palavra e Meia Semanal no Instagram: @_palavraemeiasemanal

Em breve, campanha de assinaturas!

BIBLIOGRAFIA

CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo:FBSP, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes/212/atlas-da-violencia-2021 Acesso em: 19 de setembro de 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Discriminação e violência contra a população LGBTQIA+: relatório da pesquisa. Brasília:CNJ, 2022. Disponível em

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/08/relatorio-pesquisa-discriminacao-e-violencia-contra-lgbtqia.pdf Acesso em: 19 de setembro de 2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo:FBSP, 2023. Disponível em:

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf Acesso em 19 de setembro de 2023.

INSTITUTO SOU DA PAZ. Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial 2ª edição. São Paulo:SDP, 2022. Disponível em: https://soudapaz.org/wp-content/uploads/2022/11/Violencia_armada_e_racismo_edicao_2022.pdf Acesso em 19 de setembro de 2023.

OLIVEIRA, José Marcelo Domingos de. Desejo, preconceito e morte: assassinatos de LGBT em Sergipe 1980 a 2010. 2012. 251 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012. Disponível em:
https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/13802/1/DesejoPreconceitoMorte_ Oliveira_2012.pdf. Acesso em: 19 ago. 2023.

PORTAL DO GOVERNO. SP tem delegacia especializada em crimes contra público LGBT. Últimas notícias. 30 Maio 2018. Disponível em:

https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/sp-tem-delegacia-especializada-em-crimes-contra-o-publico-lgbt/ Acesso em 19 de setembro de 2023.