Conhecer as autoras lésbicas

Historicamente, mulheres lésbicas em movimentos sociais têm assinado com pseudônimos ou apelidos a autoria de revistas, livretos, zines e informativos. Ou então simplesmente não assinam, são textos anônimos diluídos em impressos coletivos, às vezes assinados em nome do grupo, do movimento social que organiza e distribui o material.

“Analisei o boletim Iamaricumá buscando desvelar as matrizes de sentido que compõe, em rede, uma inteligibilidade possível dos movimentos lesbianos no Brasil. A edição do boletim Iamaricumá, veiculado em janeiro de 1981 pelo grupo homônimo de lesbianas (…) O boletim era anônimo. No caso, a identidade pessoal é descartada em função de uma visibilidade/inteligibilidade de grupo. Esse anonimato é, inclusive, uma opção explícita no editorial (…)” (Patricia Lessa “Chana com Chana e outras narrativas lesbianas em Pindorama”, p.141-142)

Mais de quarenta anos depois e observa-se a mesma prática em impressos e em textos digitais na internet produzidos e distribuídos por mulheres lésbicas. No meio das mulheres lésbicas, se sabem quem são, pois, se conhecem das redes presenciais e/ou remotas, nos comunicamos pessoalmente e compartilhamos informações, dentre elas, a divulgação de nossos próprios textos assinados anonimamente.

Uma primeira observação aponta para o contexto de relações sociais no meio de mulheres lésbicas em movimentos sociais muitas vezes orientado para a difusão da fala dentro do próprio meio. Há um norte em fortalecer-se enquanto grupo através da solidariedade, dos mútuos reconhecimentos, da descoberta individual e coletiva das próprias falas, do desenvolvimento da perspectiva lésbica, da teoria, da arte e da cultura lésbica. Descobertas que se fazem na intensidade e extensividade da convivência, em muitos casos, apartada do resto da sociedade, em temporários espaços de recolhimento e possibilidade de desenvolvimento entre semelhantes, originando a elaboração coletiva de ferramentas de entendimento da realidade. Esse contexto não prescinde da assinatura dos textos, pois as pessoas já se conhecem e conhecem os pseudônimos ou os anonimatos utilizados. Aqui a autoria é conhecida através da rede cotidiana de relações sociais.

É comum que o anonimato ocorra devido à necessidade de proteção frente a prováveis ataques lesbofóbicos vindos dos mais diversos lugares sociais. Contexto que tem colocado em risco a vida das mulheres lésbicas escritoras nos vários países. A assinatura conduz o leitor ou a leitora ao reconhecimento da identidade da pessoa que escreve e, no caso de potenciais leitores agressores, podem se utilizar deste reconhecimento para praticar assédios, perseguições e outros tipos de violência nos espaços profissionais ou pessoais das mulheres lésbicas escritoras. O anonimato, nesse caso, tem a função de proteção da vida.

O passado histórico demonstra mulheres – lésbicas ou não – assinando como homens devido a proibições de mulheres escreverem e publicarem e ao possível rechaço em relação a textos de autoria feminina com prováveis desvalorizações ou indiferença em relação ao conteúdo veiculado. A palavra da mulher tem enfrentado persistentes obstáculos na maioria das sociedades nos últimos milênios.

Os temas abordados podem também ser considerados obstáculos para a assinatura dos textos, no caso de abordarem temas relativos à lesbianidade. Ainda há muitos países onde a homossexualidade é considerada crime. Em tempos passados ou no presente, abordar ou defender a existência das mulheres lésbicas significa afrontar regimes coletivos de controle sobre os corpos contra os quais não se tem força individual ou coletiva para combater. Sendo lésbica ou não, o tema é proibido ou foi proibido em muitas épocas e locais. Assinar textos com esse conteúdo seria o mesmo que assinar a própria sentença de morte.

São muitos os motivos que vêm impedindo mulheres lésbicas de assinarem seus textos. Ao sermos confrontadas com esses motivos, enquanto sociedade, devemos nos esforçar mais para garantir segurança, reconhecimento e plenos direitos para a população de mulheres lésbicas.

O anonimato pode ser considerado uma espécie de silêncio. O texto fala, a autora fala através do texto, mas, sem sua assinatura, ela não é coletivamente reconhecida enquanto a pessoa que fala aquele texto, aquelas ideias. A autoria se torna dissociada de sua pessoa, a difusão dessa pessoa enquanto profissional, pensadora, propositora. O texto fala, mas a autora não está ali, falando com ele. Ainda que as ideias se difundam, elas são espalhadas desvinculadas do contexto que as originou, o que gera também uma defasagem na interpretação.

A fala plena seria aquela que possibilita o reconhecimento de quem fala, afinal, é alguém que fala. A fala é produzida por uma pessoa ou mais pessoas e não existe sem elas. O texto apenas é possível porque alguém o produziu e ele se torna completo no reconhecimento da autoria, no entendimento da origem daquela ideia. Nesse sentido, é possível uma aproximação com Audre Lorde, quando aborda a importância de se sair do silêncio, frisando que o silêncio não é sinônimo para proteção.

“Eu passei a acreditar várias e várias vezes que o que é mais importante para mim deve ser falado, tornar-se verbal e compartilhado, mesmo sob o risco de ser atacado ou mal-entendido. Que o falar me beneficia, além de qualquer outro efeito. Estou aqui como uma poeta lésbica e Negra e o significado de tudo que é confrontado com o fato de que ainda estou viva e poderia não estar. Menos de dois meses atrás eu fui avisada por dois médicos, um homem e uma mulher, que eu terei que realizar a cirurgia para câncer de mama (…) eu iria morrer, mais cedo ou mais tarde, tenha eu alguma vez falado por mim mesma ou não. Meus silêncios não tinham me protegido. O teu silêncio não irá te proteger. Mas para cada verdadeira palavra falada, por toda tentativa que eu já tenha realizado em falar aquelas verdades as quais ainda estou buscando, eu fiz contato com outras mulheres enquanto examinamos as palavras para se encaixarem em um mundo no qual todas nós acreditamos, construindo pontes entre nossas diferenças. E foi a preocupação e o carinho por todas essas mulheres que me deu forças e possibilitou que eu analisasse o que é essencial em minha vida”  (Audre Lorde “Sister Outsider. Essays and speeches.” p. 40-41)

Ainda que o silêncio possa proteger temporariamente em determinadas situações, visto no todo da vida de uma pessoa ou coletivo de pessoas, não é o silêncio que irá promover um ambiente contínuo e garantido de segurança para a existência plena de cada indivíduo. No caso das mulheres lésbicas, a existência plena é assegurada também com o reconhecimento de suas identidades por inteiro e não com o acobertamento de sua orientação sexual. Viver no anonimato não garante segurança coletiva e nem individual completas. Isso porque a segurança deriva também do estar em público, protegida pelo olhar coletivo entendido em seu aspecto da democracia e da garantia de direitos, pois, as brechas encontradas na penumbra possibilitam indivíduos atacarem sem que ninguém esteja testemunhando. Se estiver em perigo, grite, grite alto, para que todas as pessoas em volta possam ouvir, garanta testemunhas. Exponha a pessoa ou as pessoas agressoras. Nomeie-se e nomeie a violência. Deponha sobre a sociedade e explicite os processos de controle, desrespeito, indiferença e violência. Aproprie-se corporalmente do mundo, participe da tribuna coletiva e faça sua colaboração coletiva, social, política. Deixe-se conhecer e assim, fortaleça outras e mais mulheres lésbicas ao redor do mundo que talvez ainda não possam ou não consigam falar.

BIBLIOGRAFIA

LESSA, Patricia. Chana com Chana e outras narrativas lésbicas em Pindorama. Editora Lua: 2022.

LORDE, Audre. Sister Outsider. Essays and speeches. Crossing Press: 2007

Texto curto da seção Debate com autoras escrito por Daniela Alvares Beskow

27 de agosto de 2023

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